A HISTÓRIA DO PERDIGUEIRO
O perdigueiro português é um cão de parar que está integrado no 7ºGrupo da Federação Cinológica Internacional (FCI) - cães de parar. Em Portugal, entre raças nacionais e estrangeiras, é um dos cães de caça mais registado em Livros de Origens e um dos mais populares entre todos os cães.
Com raízes remotas nos milenares cães de busca ibéricos que tinham a faculdade de se imobilizar na presença da caça, o nosso perdigueiro é uma das raças mais antigas do Mundo, com características morfológicas e funcionais idênticas às actuais pelo menos há 1000 anos. Actualmente é o único representante reconhecido pela FCI do antigo perdigueiro ibérico de pêlo curto. Ao longo dos séculos foi criado nos canis reais, da nobreza e do clero e utilizado na busca de caça ferida em montarias, na caça de altanaria e na caça com rede a lanço. Com a utilização das armas de fogo na caça, passou a ser usado como cão de parar e de cobro.
A sua figura está representada entre outros numa lápide sepulcral visigótico-moçárabe da Igreja de S. João Baptista de Tomar (Séc. X), no Testamento Veteres de SªCruz de Coimbra (Séc.XII) e no Génesis de uma Bíblia portátil do Séc.XIII (Biblioteca Nacional de Lisboa). Desde o rei Afonso III (1248-1279) que aos cães destinados a caçar aves, era dado o nome de podengos de mostra, designação que permanece hoje em Espanha onde o cão de parar é conhecido por "perro de muestra" [Ordenações, 1261 - "...e os açoreiros que levem os podengos..."]. No Livro de Montaria de D. João I (1357-1433) é mencionado igualmente como podengo de mostra, ou seja um cão de "pés grandes" ( do grego podos - podengo), que evidenciava capacidade de parar perante a caça gozando de grande prestígio entre os seus utilizadores.
Acompanha os membros da casa real e fidalguia nas suas ligações europeias (Espanha, França, Itália, Flandres, etc) estando representado num quadro seiscentista de Lucas Cranach no Museu do Prado em Madrid «Caçada em honra de Carlos V no Castelo de Torgau». Cenas de caça que envolvem de um lado o Imperador e seu séquito, do outro a imperatriz Isabel de Portugal que caça de bésta tendo próximo um perdigueiro em mostra, preso por longa corda, um pormenor que se mantém em toda a iconografia desses séculos ligada aos cães de mostra ou de parar.
No reinado de D.Sebastião (Século XVI) é comum (ainda que proibido) o seu uso pelas classes populares. A constante sangria em braços de trabalho provocada pelas descobertas, o abandono dos campos, a fome e a mudança de hábitos, levaram a população a recorrer mais à caça como alimento e consequentemente à utilização do cão de mostra, que lhe estava "vedado" por causar, mercê das suas excelentes qualidades, graves danos nos interesses venatórios da casa real e da nobreza. No «Regimento das Coutadas de Lisboa e seu termo» (D.Sebastião, 1557-1578) aparece ao que parece por vez primeira o termo perdigueiro designando um cão específico para a caça às perdizes e codornizes. Neste Regimento eram penalizados gravemente os seus possuidores não autorizados que fossem reincidentes, com uma pena de dois anos de degredo nas galés... Curiosamente esta é uma época de grande expansão da raça, tendo chegado à América do Norte (à Terra de João Fernandes Lavrador, onde contribuiu para a origem do Retriever do Labrador), ao Brasil, à Índia (algodão bordado - Bengala - Séc.XVII , Museu Nacional de Arte Antiga de Lisboa) e ao Japão, já que integrava o rol de bens transportados na primeira nau ocidental que aportou às ilhas nipónicas (Biombos Namban - Séc.XVI).
Figura também com representação fiel em azulejos, como são exemplos o painel de finais do Séc.XVII em Estremoz (caça com rede a lanço) e do Séc. XVIII no Palácio Mello (Convento de Sº António dos Capuchos de Lisboa) ou na Sé do Porto. Ilustra uma cena de caça num livro português de 1718 dedicado a D.João V (A Espingarda Perfeyta) e aparece esculpido em pedra em solares e palácios dos séculos XVIII-XIX (Alorna e Torres Vedras).
A partir do século XVIII tornou-se conhecido e apreciado pela colónia mercantil inglesa do norte de Portugal ligada ao vinho do Porto e muitos exemplares foram enviados para Inglaterra, onde constituiram a base do Pointer. Sydenham Edwards (in Cinographia Britânica de 1800) afirmava ter esse pointer “espanhol” (leia-se ibérico, já que há muito tempo a Peninsula Ibérica tinha dois Estados distintos) sido introduzido no seu país por um negociante português, numa época assaz recente...
Nos fins do Séc.XIX sofreu algum declínio, mercê de convulsões sociais graves e de novos gostos e contactos com o exterior, que davam projecção a raças estrangeiras então em moda. Mas continua a estar representado em objectos de arte (Jarra pintada à mão por D.Fernando II de Saxe-Coburgo, Palácio da Pena - Sintra), pintura do Rei D.Luis e dos principes trajando de caça no Palácio da Ajuda, Lisboa), pintura de uma jornada de caça de um inglês no Douro (Quinta de Gatão, Douro) ou em cerâmica artística da Real Fábrica do Rato (Palácio Pimenta, Lisboa).
Felizmente para todos nós, a teimosia de um povo, desgarrado de modas e estrangeirismos e a inacessibilidade de certas regiões montanhosas com destaque para o Nordeste Transmontano e região do Douro, fizeram permanecer nessa região em estado puro e livre de mestiçagens com as raças da moda, o velho perdigueiro nacional que serviu de base a um longo e tenaz trabalho de procura, identificação, selecção e recuperação. No primeiro quartel do Século XX alguns criadores deram início a esse esforço a partir dos núcleos conservados puros sobretudo no norte, tendo sido fundado o Livro Português de Origens em 1932, elaborado o primeiro Estalão em 1931 e reconhecido internacionalmente como Standard da raça em 1938, com actualizações em 1962 e em 2004.