Artigos - História do Perdigueiro


O NOSSO PERDIGUEIRO HÁ 800 ANOS

Sempre interessados por problemas que, directa ou indirectamente, podem dizer respeito a Portugal, procuramos não deixar passar desapercebido tudo aquilo que, nesse sentido, se nos depara diante dos olhos e do entendimento.

No livro A iluminura de Santa Cruz no Tempo de Santo António, da autoria de Maria Adelaide Miranda - Edições Inapa, integrado nas Comemorações do VIII centenário do Santo lisboeta, deparámos com uma das ilustrações, que nos causou vivo. A iluminura em causa é um pormenor do fólio 363 V do Testamento Veteres, uma Bíblia executada no Scriptorium do Mosteiro de Santa Cruz de Coimbra na segunda metade do Século XII ou seja, entre 1150 e 1199. Códice que tem a cota Santa Cruz 1 e se guarda hoje na Biblioteca Pública Municipal do Porto.

Na bordadura superior do fólio 363 V, dentro de um entrelaçado de troncos, surge uma cena de caça de superior desenho e colorido: um cão perseguindo um coelho: Foi precisamente no cão que centrámos a nossa atenção. Estaríamos perante um perdigueiro português desenhado e pintado em data tão remota?

Tudo nos levava a concluir que sim, com excepção de um pequeno detalhe - as orelhas. Mas, se considerarmos, como é natural, que o autor do fólio 363 V não desenhou a cena com o modelo na frente; se considerarmos ainda a posição do cão no entrelaçado dos ramos, talvez que a questão das orelhas não seja um problema vital.

Mas este será mesmo quase um milagre do Santo, que afinal estudou por esse códice.

Estudado em pormenor diz-nos algo da sua função. Sem dúvida que é um cão de caça, até porque persegue o coelho, vendo-se mais à frente uma ave. Parece até deslizar, de cabeça levantada e fá-lo num emaranhado de troncos e ramos. Mas será um cão de parar?

Era importante sabê-lo. É do conhecimento de todos nós que o perdigueiro nacional e o seu "neto” pointer radicam a sua origem no antigo sabujo de busca ibérico, com capacidade de mostra e paragem, a qual foi sendo progressivamente fixada e desenvolvida.

Mas olhando para o seu aspecto mais alguma coisa podemos verificar. É um cão de tamanho médio, não comprido de corpo, com pêlo curto amarelo-avermelhado unicolor e de cauda inteira. A sua cabeça parece um pouco volumosa e tem eixos crânio-faciais convergentes; o crânio é quadrado, a testa alta, o ângulo crânio-facial (stop) marcado, o chanfro curto e recto na linha superior, o lábio superior desenvolvido e de comissura labial pregueada.

As orelhas são de dificil avaliação, pois estão repuxadas para trás, na deslocação "sorrateira” por debaixo da vegetação não se podendo ver a sua forma mas parecendo apresentar uma inserção alta no crânio.

De pescoço nem curto nem comprido, tem um corpo de animal de movimento, com peito fundo, ventre pouco cheio mas não arregaçado. Dos membros, bem angulados e com boa ossatura, chamo a atenção para a posição dos anteriores praticamente imóveis e para os posteriores esboçando um movimento lento. Atente-se ainda nas mãos e pés grandes e arredondados, aspecto que dois séculos depois lhe daria o nome de “podengo” de mostra (o de pés grandes). A cauda - bom, parece que ela teria começado a ser cortada por volta do século XVII, mas pela iluminura vê-se que era comprida, grossa de implantação média alta.

Em resumo: Já que em relação à cauda ela está inteira apenas porque não lha cortaram e quanto às orelhas, pendentes e de implantação alta, poderão ficar a dever o seu repuxamento apenas à deslocação cautelosa do animal entre a vegetação, em tudo o mais, estamos perante o aspecto de um perdigueiro português actual deslizando sorrateiro atrás de um coelho...

Para concluir e em face do exposto, baseados na morfologia, função e textos descritivos antigos pemitimo-nos aceitar como válida a hipótese de estarmos perante a representação medieval do cão de mostra ibérico de há 800 anos, ascendente em linha directa daquele que é hoje a sua representação viva e fiel - o Perdigueiro Português.