Artigos - História do Perdigueiro


Os perdigueiros da Índia bordados em Algodão

Constitui hoje teoria aceite que o perdigueiro português e todos os cães de parar que lhe são aparentados e que têm origem nos antigos cães ibéricos (pointer e bracóides mais ou menos pointerizados) têm um tronco comum a partir do antigo sabujo de busca ibérico de pêlo curto existente em Portugal e nalgumas regiões espanholas próximas.

Este antigo sabujo de busca era um cão utilizado na procura da caça maior ou menor que se escondia após a montaria e era um tipo de cão que já nessa época se imobilizava quando sentia o cheiro da caça. O homem “apenas” apurou, desenvolveu e fixou ao longo dos anos na carga genética desses cães, a capacidade inata de mostrar e parar.

E se isto hoje é claro (como já o era há 600 anos para Gaston Phoébus, Conde de Foix no Livro da Caça que escreveu) poucos actualmente terão a noção da imagem, de “como era” esse ancestral do perdigueiro português.

O manuscrito do Conde de Foix (Biblioteca Nacional de França) é do século XIV (1387). No texto o seu autor faz não só uma aproximada descrição dos cães ibéricos da época (chien d’oysel, chien couchant) denominando-os de “espanhóis” (espaignols) como nos deixa algumas imagens dos vários tipos de cães utilizados. Mas é de notar que de entre esses vários tipos, há um que sobressai, porque mais representado e constituido por cães com características semelhantes, o que permite deduzir tratar-se de raça já então bem definida existente na Península Ibérica e aí provavelmente originada pois não há referências biblio-iconográficas da sua existência noutros locais da Europa e do Mundo nesses tempos remotos.

A análise detalhada destas imagens com mais de seiscentos anos permite avaliar alguns aspectos dignos de registo. Os cães ibéricos representados são de vários tipos (Fig.1) - lebréus, mastins, alãos e sabujos. Os últimos merecem a nossa atenção.

Estes sabujos são cães unicolores e de cores bem estabelecidas - amarelo em várias tonalidades (claro, comum e escuro), castanhos, pretos e brancos (Fig.2).

Peguemos num deles e atentemos nos pormenores. Repare-se que este sabujo (Fig.3) é um cão de porte médio (parece um pouco maior porque em plano mais destacado que o do caçador) tem pêlo curto, a cauda inteira, grossa, de implantação média-alta.

A cabeça é grande e grosseiramente quadrada, de eixos convergentes, a fronte alta e stop marcado, o focinho curto, recto e quadrado de perfil, o lábio pendente e boleado, a parótida cheia, a prega da comissura labial descaída. Os olhos grandes, aflorados e ovalares, as orelhas de implantação alta, triangulares, pendentes e de vértice arredondado. O pescoço é curto e forte, com pequena barbela. O corpo não é comprido, a linha dorsal recta-ascendente, as costelas visíveis e o rim curto, o peito profundo descendo ao codilho, o ventre não muito cheio. Os membros são bem aprumados, as mãos arredondadas e fortes, o curvilhão não muito baixo...

Atente-se agora no pormenor da função - no meio de mato e bosque, um caçador faz-se acompanhar de um cão que se imobiliza na presença de um javali escondido. E este cão está preso por uma corda bastante longa, enrolada em várias voltas na mão do caçador. Este tipo de corda vê-se noutras imagens de tempos remotos com estes cães de mostra usados por portugueses (Lucas Cranach - Museu do Prado de Madrid- Séc.XVI, biombo NanBan japonês - Séc.XVI, etc). Ao contrário de outros cães de caça, estes cães de mostra eram utilizados para descobrir a caça acamada e na caça com bésta, ou na caça de cetraria, sempre presos por uma corda comprida, que permitia ao cão margem suficiente para fazer a busca mas de modo a que o caçador o tivesse sob controle, logo que se imobilizava.

Perdigueiro em mostra

 Isabel de Portugal caça com perdigueiro em mostra. Pormenor da corda comprida (Madrid, Séc. XVI)

Esta é uma boa representação do que foi o nosso perdigueiro no século XIV e que hoje se mantém praticamente igual. Um cão de caça que mostrava e parava, com uma cabeça (Fig.4), um corpo e membros que não têm paralelo com qualquer outra raça actual ou de que tenha havido conhecimento. Olhe-se para as cores, que não estarão assim por acaso - o amarelo, o castanho, o preto e o branco foram as cores do nosso perdigueiro até 1962 e hoje ainda vai nascendo um ou outro exemplar de cor diferente das três tonalidades de amarelo que o Estalão consagra.

Este cão do Conde de Foix (Fig.3), que ele descrevia como “espaignol”, era o cão de mostra da época e, era nada mais nada menos que amarelo camurça unicolor - tal qual e desde sempre a cor mais comum do perdigueiro português...

A diferença para hoje, apenas na cauda, que não era cortada nesses tempos…

Espero que este seja mais um contributo para se escrever direito o que tem andado escrito com linhas tortas. Por falta de interesse na divulgação e investigação do que é nosso. Por não acreditarmos em nós próprios e no nosso património. Espero que lenta mas persistentemente seja possível repor a “verdade histórica”. Acabe-se com a ignorância e a ideia mal formada de que ao nosso cão de parar lhe faltam testemunhos de História. Ele é, como todos os dados disponíveis até hoje atestam, o único representante vivo (e quase igual ao que sempre foi) dos antigos cães de mostra ibéricos, erradamente conhecidos na maioria dos livros estrangeiros sobre cães de caça, como “espanhóis”.